Longe do interfone

Estava me espreguiçando, com a luz ainda mordendo os lábios e uma curiosidade mansa de quem não definiu se era quinta ou sexta-feira.

Quando vejo na frente de minha casa, no outro lado da rua, um casal se beijando fervorosamente dentro do carro. Seis horas e 30, nem isso. Os passarinhos aprontavam as merendeiras de seus filhotes.

O beijo do casal ultrapassava a medida de uma xícara. Era cálice noturno. Os dois continuavam a madrugada, não despertavam como eu, prosseguiam, agitados e insones. Volúveis, contentes da fraqueza de opinião: despediam-se e retornavam repetidamente. Abraçavam-se e se davam distância para logo repor o enlace. Cada vez mais forte. Cada vez mais denso. Enforcados de cabelos.

Encontrei naquele momento o início da paixão. Não precisavam telefonar no dia seguinte, já vinham mergulhados nele. O início sem reservas. O despudor da confiança, onde não há futuro, nem perspectiva, somente uma indigência feroz de pedir mais e mais entre um gesto e o seguinte.

O começo disposto do dia de dois apaixonados. Com um ritmo só deles, só possível para quem passou a noite transando ou procurando não dormir fazendo barulho com as unhas nos travesseiros. Eu invejava o espírito aventureiro que nada nega, que nada discorda, que nada dificulta, que coloca sua casa numa mochila de pano.

Os dois seguiam se cheirando, se fungando, até que ela desceu e vi que ele não havia estacionado diante do prédio dela. Ficou distante, e ela correu, meio embaraçada, por uns metros. E enxerguei que ela não podia dizer que tinha voltado com ele. Por um motivo proibido, secreto. Enganavam as ruas de bairro. Não foi falta de cavalheirismo, foi um pedido, um consenso de consoantes.

Ela voltou os olhos para trás. E ele a imitou ondulando os braços, girando o volante como um leme, deslizando pelos cantos. Ela enrijeceu o dedo indicador. Aquilo me emocionou: o casal já tinha intimidade para se ofender e não se magoar. O insulto dela escandalizou os filhotes de aves que iam para a escola de nuvens.




Eu me acordava lento e o rapaz acelerava e desaparecia. Reparei nas árvores que escoltavam minhas janelas. Duas sibipirunas. A sibipiruna cresce mais alto na cidade. Não que seja feliz. É para fugir do ar manchado, da pressão dos telhados e arranha-céus, do barulho do trânsito. Se ela morasse na mata, cresceria para os lados, espalhando seus galhos. Mas ela se sente emparedada e sobe, sobe como quem segura seus pertences na cabeça enquanto atravessa um pântano, sobe para levantar ao máximo as sementes da copa e protegê-las.

Eu entendi o quanto nossa altura é uma saída violenta por um pouco de paz. De qualquer jeito.

2 comentários:

Gabriela Castro disse...

Pequenaaa
Li postagens e adorei o blog. Boa sorte!!
beijão :)

Babih Xavier disse...

Lindo o texto...
O amor depois de racional
depois que adquire intimidade
é ainda mais lindo que o amor de
contos de fadas...

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